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Brasília, DF, Brazil
Cláudia Falluh Balduino Ferreira é doutora em teoria literária e professora de literatura francesa e magrebina de expressão francesa na Universidade de Brasília. Sua pesquisa sobre a literatura árabe comunga com as fontes do sagrado, da arte, da história e da fenomenologia em busca do sentido e do conhecimento do humano.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

"Eu matei Sherazade". Confissões de uma árabe enfurecida. A escritora libanesa Joumana Haddad.


                                                                

Se a máxima ocidental dos tempos da realeza dizia: "...Longa vida ao rei,  (ou à rainha) ", a máxima moderna desta escritora libanesa é confessional e passionalmente explícita. Sem pestanejar ela anuncia ter eliminado a célebre rainha contadora de histórias.
Publicado pela Editora Record, estas confissões "de uma árabe enfurecida", como a escritora libanesa se autodenomina é no mínimo espantosa! Sherazade encarna o protótipo de contadora de histórias que assim o faz para aplacar a ira de um real esposo. E acaba aplacando mesmo e em consequência tendo vários filhos entre uma historia e outra, os quais o rei só descobre após a milésima primeira noite... Nem tudo era só contação de história. 
Pois bem,  através da morte simbólica da rainha, Joumana Haddad quer 'matar' igualmente a imagem criada no ocidente sobre a mulher árabe: oprimida, rechaçada, em silêncio contrito e penitencial, muda atrás dos véus que só de neles pensar me atiça a claustrofobia. Eu arrancaria todos eles em desabalada carreira pelo território da liberdade de Tifachi, ou de al-Djawbarî, que já nos idos dos séculos XIII e XIV mostraram as mulheres árabes em seus mínimos detalhes físicos e de expertise sexual e vivencial nas páginas dos tratados de erotismo que escreveram.

          
Joumana Haddad

A literatura magrebina mostra desde suas primeiras manifestações esta mulher que Joumana diz não existir mais. Alvíssaras!

É bom saber que as coisas mudaram desde Driss Chraibi, autor marroquino, que em seu romance Le passé simple descreve uma família sob o julgo paternal com extrema violência sobretudo a imagem da mãe, que não ousa falar, nem levantar os olhos para o marido, reclusa nas cozinhas alimentando-se junto aos fogareiros e às tajines mornas, enquanto o pai reina soberano sobre a família. Mulheres que só são demandadas para o prazer e para o trabalho estão presentes também na obra do argelino Rachid Boudjedra, em La Repudiation. Já  o marroquino Tahar Ben Jelloun evoca o lado oculto do espelho: para ele, o manto de servidão e pudor serve para mascarar um ser maquiavélico: a mulher. Olhos baixos na rua, mas em casa voam pelos ares as caçarolas de tajine e imprecações morais lançadas pelas esposas sobre aquele que é tido como o grande opressor: o homem.  




"Eu matei Sherazade" é realista, mas também é divertido. Contesta a cada página "a mulher oriental criada pelo ocidente". Volta um olhar sobre o homem árabe, sobre todos os tabus que imperam sobre o sexo, sobre a família e sobre a verdade pelo menos da mulher libanesa. Mas, principalmente, Joumana fala do preconceito, do avanço do integrismo acirrando a misoginia. Fala dos tabus que reinam sobre todo tipo de assunto ligado à sexualidade, das conspirações da mulheres contra as própria mulheres, perpetuando a dominação e o ódio em todos os planos da atuação feminina: seja no trabalho, no lar, na sociedade enfim. 
A imagem estereotipada da mulher árabe seja envolta em véus e submissa nos haréns e nas cozinhas está com os dias contados se depender da pluma desta escritora vigorosa que, 'enfurecida', esclarece a situação. Ela faz soar bem alto os versos do poeta  medieval iraquiano Abu Nowâs, que diz em um dos seus célebres poemas sobre a mulher e o casamento: "Oh, mon ami, puisse mon infortune vous servir de leçon.   Le mariage est une prision pour toutes nos mésaventures".
Mas considerando os títulos dos capítulos constantes nos tratados eróticos de Tifachi e Djawbari, citados acima, podemos ver que desde o medievo árabe a imagem oculta da mulher que Haddad esclarece em seu livro ultra moderno já era muito bem conhecida. São títulos como : Les règles du massage et les manières des masseuses, ou Les femmes libertines qui s'offrent d'elle mêmes, entre outros.
Tudo isso, tanto os tratados de erotismo medievais, quanto o livro de Joumana são canais que livremente dão nome aos bois. 
No caso dos erotólogos medievais, eles dirigem-se diretamente à sensualidade do leitor e revelam um tipo de mulher. 
Quanto à Joumana Haddad, ela envia uma carga intensa de verdade  ao senso crítico daqueles que querem ler (e ver) por debaixo do véu da hipocrisia reinante, a verdadeira imagem e a essência da mulher no mundo árabe. 
Joumana é também autora de Superman est arabe, ainda sem tradução para o português.