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Brasília, DF, Brazil
Cláudia Falluh Balduino Ferreira é doutora em teoria literária e professora de literatura francesa e magrebina de expressão francesa na Universidade de Brasília. Sua pesquisa sobre a literatura árabe comunga com as fontes do sagrado, da arte, da história e da fenomenologia em busca do sentido e do conhecimento do humano.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Existe humor no islã? As mulheres respondem.

Existe humor no islã? Esta nunca foi a pergunta que não quis calar, portanto, pergunto, (logo, continuo existindo)  e vejo uma das respostas no livro da tunisiana Leila Labidi, "L'humour dans l'islam" (El fakah fil islam).
Publicado em 2010 pela editora libanesa Dar Essaqi, (Beirute) ainda sem tradução do árabe, o tema é, no mínimo, insólito, mas não deixa de cair bem e surpreender neste momento em que o islã é colocado em evidência através do famigerado filme que tanto tem causado polêmicas e mortes pelo mundo afora.
Dentro do contexto do filme e de seu impacto nas comunidades islâmicas mundiais a última coisa sobre a qual se poderia pensar seria no humor. Deixemos, pois, o malfadado de lado, de vez que ele não foi confeccionado por muçulmanos, mas por seus infernais inimigos americanos em tempos de eleições (continuo existindo...) e uma discussão, ainda que seja interessante do ponto de vista sociológico, não é nosso propósito.
Quero, isso sim, falar do humor dentro do islã. Este aspecto desta religião tem passado despercebido devido a razões que conhecemos todos e que causam o atolamento da religião islâmica aos olhos ocidentais em todos os ismos maléficos e estuporantes com os quais se tornou praxe defini-la e aos seus crentes pelos olhares menos arguciosos, logo, mais rudes. É preciso deixar de lado a rudeza imposta pelas convicções mediáticas para conseguir ver o que só os ex-rudis conseguem. Por isso é tão difícil compreender o outro: muitas vezes a explicação não vem da observação crítica, mas do pré-conceito herdado.
Leila Labidi é uma destas ex-rudis, que de forma brilhante percorre o texto sagrado dos muçulmanos em uma busca fortuita e coroada de uma pesquisa de sucesso sobre a imagem do Profeta, seu caráter, sua troca com os que passaram em sua vida,  revelando o islã pelo ângulo dos momentos de alegria, de graça, de jovialidade, de riso e de sorrisos que marcaram a vida de seus primeiros adeptos e do próprio Maomé. A autora passa em revista as grandes épocas e escolas do riso durante a Antiguidade greco-romana e entre os primeiros árabes, consagrando neste livro um capítulo inteiro ao "riso de Allah". Tudo isso folheando minuciosamente o alcorão e os ditos do Profeta, a tradição. O texto de  Layla Labidi traz informações que ao mesmo tempo divertem, instigam, enfrentam os tabus e sobretudo provocam a reflexão e assim esclarecem - a despeito das concepções pré-estabelecidas tanto entre muçulmanos como não-muçulmanos -, a aura de austeridade, de gravidade e de sinistra frieza que inspirariam a religião de Maomé.  
 
Nestes tempos calamitosos que vivemos, em que a religião é o estopim e o pretexto para as discórdias humanas, em que ribombam os ecos antigos e sangrentos das Cruzadas  pelos quatro cantos do planeta é no mínimo sublime a iniciativa intelectual de Leila Labidi.  

A mulher e o sagrado.
 
A visão feminina do sagrado e da performance da mulher em religião sempre foi o que deu alento às religiões conhecidas como "do Livro", o judaísmo, o cristianismo, e o islã. Os textos santos sempre encontram fôlego na presença da mulher, cuja performance junto aos 'arautos' de Deus, alivia as leis draconianas que os homens criam para tentar compreender e interpretar o Criador. E muitas vezes as mulheres são vítimas destas mesmas leis. E só passar em revista a situação da primeira mulher Eva, e percorrer o judaísmo nas faces de Esther, de Rute, de Judith, de Suzana, de Sara. Sigam pela transição ao cristianismo que a Virgem Maria representa, por Maria Madalena, Joana, Affia e Febe, mencionadas por São Paulo, entre muitas outras que os Evangelhos informam terem sido seguidoras do Cristo, mas sempre como figuras secundárias, veladas, ocultas pela preminência masculina que rege até hoje a prática religiosa. Daí tanta intolerância e vaidade a meu ver. E finalmente  no islã, surgem mulheres impressionantes e importantíssimas como Amina, Khadija,  Halima, Aicha, Zaynab, Çaifa, Maymouna. Mas verdade é que nomes de mulheres não são citados no Alcorão, à excessão, pasmem, da Virgem Maria  citada não menos que 34 vezes e a quem uma surata inteira é dedicada. A mulher está para o sagrado como a árvore para as folhas, a semente para o fruto, a água para a vida. É intolerável ter sido mantida apartada da prática religiosa e espiritual ao longo da história.
 
Leila Labidi, assim como sua conterrânea, a tunisiana Olfa Youssef são duas mulheres que colocam o islã sob os holofotes da pesquisa, da modernidade levantando fontes, confrontando dados, introduzindo na leitura as modernas teorias interpretativas e revelando dados, detalhes e lados do texto sagrado, o qual desde sempre reduzido e amarrado na exegese e na ótica masculina do orgulho e do egoísmo, transformam Deus em algoz e os que nele crêem em mujahidins do sagrado.
Realmente, assim não tem a menor graça...

Por Cláudia Falluh Balduino Ferreira
 
 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Victor Hugo e a colonização da Argélia no século XIX.

A Universidade de Brasília comemorou dias 28, 29 e 30 de agosto os 210 anos do escritor Victor Hugo em um evento intitulado 210 HugoAnos.

A ocasião reuniu pesquisadores internacionais do grande gênio francês, como Arnaud Laster e Danielle Gasiglia-Laster (França), Maxime Prévost (Canadá) e Delphine Glaise (França) e nacionais como Bárbara Freitag-Rouanet, Hermenegildo Bastos, Elga Laborde, Marcos Moreira, Augusto Rodrigues, Edvaldo Bergamo, Piero Eyben, Sidney Barbosa e Cláudia Falluh Balduino, todos professores e ex-professores da UnB. Em um clima de muita troca, descobertas e sobretudo interações multidisciplinares, Victor Hugo foi relido e revisitado à luz da arte pictórica,  da crítica literária, da história, gerando debates e renovando a fascinação exercida pelo criador do célebre Corcunda de Notre Dame, que atravessa o tempo!



Este ano de 2012 é ano de jubileus extraordinários que se convergem de forma muito rica no espaço universitário brasiliense: a Universidade de Brasília, especialmente o Instituto de Letras comemoram 50 anos, a Argélia celebra o cinquentenário de sua independência, o romance Os miseráveis comemora 150 anos de sua edição, e  de Victor Hugo os 210 anos de nascimento. São números que nos informam que o tempo passa (ou nous passons...) mas que é fundamental comemorarmos, renovando os homens, a memória e fortalecendo e estimulando as novas gerações com o legado do passado! Estas comemorações encontram uma ultra-sonoridade entre nós da Universidade de Brasília.
Cláudia Falluh e Bárbara Freitag-Rouanet nos 210 HugoAnos.

O grupo de pesquisa Estudos Literários Magrebinos Francófonos esteve presente representado pela professora Cláudia Falluh Balduino que apresentou a conferência Victor Hugo e a colonização da Argélia.

Nascido em 1802, Victor Hugo acompanhou toda a movimentação do império francês pelas paragens africanas do norte e a tomada de Argélia em 1830. Manifestou-se de forma velada sobre a questão argelina, jamais tendo escrito um artigo específico ou uma obra sobre o assunto, mas colecionou em seus Carnets, ou em Choses vues notas relevantes e apontamentos. Entusiasmado em levar a civilização à barbárie de Africa, como foi assim denotado, Hugo contudo se afasta definitivamente do tema ao perceber  dominação ignóbil e predatória do exército francês sobre a Argélia. Afasta-se ainda mais ao constatar a traição da França de Louis-Philippe ao Emir Abdelkader: ao invés de libertá-lo com a rendição, conforme o prometido, a França captura e confina o Emir na França e o faz amargar anos de exílio, durante o qual falece em Damasco, sem jamais retornar ao seu país natal. Victor Hugo e Abdelkhader tinham quase a mesma idade, sendo o Emir seis anos mais novo que o escritor.
E interessante refletir sobre a trajetória destes dois homens, líderes, cada qual, do universo a que pertenciam: Victor Hugo, na literatura de seu tempo, gerindo e criando mundos e personagens diversos em uma malha em que o imaginário mesclava-se à realidade e o Emir Abdelkhader, não somente o líder da resistência argelina, mas líder de todo um povo que conseguiu conscientizar de seu valor e de seus direitos face à invasão francesa e que ecoou mais tarde, durante a colonização predatória e desumana que lhe fora imposta e durante as guerras da independência. O lider morreu em pleno processo de tomada de posse de seu país. Seus objetivos e meios estavam longe da imaginação hugoana e consistiam em propósitos honrosos, dignos, patrióticos e elevados para fazer de seu país um mundo que ingressasse nas estruturas do século XIX que incluiam a revolução industrial e o progresso. Infelizmente isso não se deu. Abdelkader é considerado o fundador do estado argelino moderno.
Enquanto isso, nos romances e poesias de Victor Hugo, o oriente surge como o espaço do exotismo e é usado com abundância na confecção de seus planos oníricos de liberdade e  fruição dos prazeres da vida. Enquanto deleita-se e faz o público francês deleitar-se com um oriente imaginário, repleto de cavaleiros audazes e mulheres extragantes, o oriente real, o Magreb, se dilacera sob ferro, fogo, massacres e a guilhotina - este instrumento francês de desgraça e de trevas transferido da hoje Place de la Concorde, em Paris, onde decepou cabeças de reis e proletários -, é desembarcada em Argel em 1850, sendo amplamente utilizada nas prisões do país pelos franceses até 1962, quando a Argélia finalmente se liberta da França. Este foi o tipo de "civilização" introduzido nas terras bérberes.
A crítica salienta que os poemas Les orientales chamar-se-ia primeiramente Algériennes. Face à proximidade deste oriente em chamas, Hugo troca o nome, e instala o oriente no lugar do sonho, mas nem os sonhos lhe darão esquecimento da realidade magrebina.

Amado leitor deste Blog, felizmente na vida tudo muda, a roda da fortuna gira, os homens passam, todos passamos, os países e os regimes evoluem. Resta a memória do vivido como frágil manifestação dos andares e atuações humanas neste mundo. Merleau-Ponty dirá "...vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos". Felizmente o mundo não é apenas o que a percepção oferece. Acima dos vícios de espírito que se refletem em uma percepção duramente fixada em elementos dolorosos como as guerras, está o espaço da criação literária que quer transcender a história e desvelar mundos outros, mas nunca deixa de jogar sua âncora no real, às vezes lodoso, às vezes sublime. 

Deixemos o passado passar e Viva a Universidade de Brasília! Viva o Instituto de Letras! Viva a Argélia independente e viva Victor Hugo!

Por Cláudia Falluh Balduino Ferreira.