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Brasília, DF, Brazil
Cláudia Falluh Balduino Ferreira é doutora em teoria literária e professora de literatura francesa e magrebina de expressão francesa na Universidade de Brasília. Sua pesquisa sobre a literatura árabe comunga com as fontes do sagrado, da arte, da história e da fenomenologia em busca do sentido e do conhecimento do humano.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Allah au pays des enfants perdus. Se todos pensassem nos jovens de seu país...



Capa da 1ª edição do romance. 


                A editora canadense Dialogues Nord Sud acaba de lançar o romance Allah au pays des enfants perdus", título belíssimo escolhido pelo autor argelino Karim Akouche  para este "... romance sem tabus sobre a Argélia atual". 
             Trata-se de uma narrativa "que mostra o rosto da Argélia cinquenta anos após a independência e que, fustigada pelo islamismo e pela corrupção" tenta se equilibrar em uma senda confusa e nebulosa de cidadãos que ora marcham titubeantes rumo a compatibilidade com valores ocidentais, ora recuam rumo as obscuras rotas pavimentadas pelos traumatismos e revoltas geradas no passado. O autor Karim Akouche investe corajosamente nestes temas tabus na criação de uma narrativa que mescla tragédia e momentos bem humorados,  sonhos e desesperos. A narrativa trás à tona o drama da juventude argelina  que tenta sair de um país absurdamente dividido e que corre o risco de se perder para sempre. Allah au pays des enfants perdus é um romance libertador, que  foca uma  juventude argelina desamparada, esquecida pela política, pela mídia e "pelo tempo que passa".
               É muito interessante notar como o título desta obra contrasta com a denúncia clara de seu conteúdo. Faz-nos lembrar Isabelle Eberhardt e seu Yasmina au pays des sables, também um romance argelino em que seres são confrontados com o desconhecido e tentar conhecê-lo não os faz menos desprotegidos e expostos.
                    A Argélia é hoje um país com um sério problema a lidar: o integrismo e toda a carga negativa   que este mal -  pois é um mal - , provoca no seio da nação já tão castigada por anos de colonização francesa predatória e cruel. O integrismo surgiu de interpretações extremadas do alcorão, pela verve algo despeitada de mentores radicais, inconformados com a modernidade que os irrita e em relação à qual relutam por orgulho imenso em se comparar ou adotar para si e conduzem o islã, do qual se fazem representantes moucos e cegos, aos umbrais do passado. O escritor tunisiano Abdelwahab Meddeb diz com razão que "a intolerância foi a doença do catolicismo, o nazismo foi a doença da Alemanha e o integrismo é por assim dizer "a doença do islã".
                   Pois bem, se os corpos sociais são afligidos por moléstias, o mundo argelino está na vitrine   e, ameaçado, corre o risco de ser tomado pela doença do integrismo, ainda que conte com segmentos inteiros da sociedade e dos partidos que lutam como anticorpos desesperados contra o ataque iminente e que já faz seus estragos e leva a rebote outras comunidades que o circundam.
                     Pois Karim Akouche compõe um universo ficcional em que Allah está, isso sim, ao lado "des enfants perdus". O que faz Allah em um mundo convulsionado como as terras Bérberes tão perto do integrismo e tão longe da lúcida tolerância do grande Abdel Khader? É esta visão que o autor quer representar aproximando Allah dos jovens, das crianças e dos esquecidos. De longe, de muito longe, do Canadá, o autor revive e reinventa um país apartado de qualquer 'primavera árabe' e que corre o risco iminente de cair em um inverno integrista muito longo, e no corpo que agoniza, está uma juventude  inconformada, que esquecida, clama...
                    O Grupo de Estudos Literários Magrebinos, da Universidade de Brasília, saúda o autor Karim Akouche e seu romance Allah au pays des enfant perdus, belíssimo título, saúda também a Editora Nord Sud, desejando-lhes muito sucesso editorial nesta trilha magnífica que o Canadá inaugura no mundo, de ser uma pátria de acolhida e reveladora, sem preconceitos, das culturas do mundo. 
                    Chegaremos lá? Não sei...
                    O Blog Literatura Magrebina Francófona é um canal de idênticas perspectivas. Disso sabemos.

Por Cláudia Falluh Balduino Ferreira.








terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Gênios e demônios: o sagrado e as personagens femininas no romance marroquino.

            Uma das mais surpreendentes informações concedida pela heroína do romance La nuit de l'erreur, de Tahar Ben Jelloun sobre si mesma é a revelação do seu conhecimento da noite em que foi concebida. O conhecimento desta informação já é per se uma indicação do caráter sacramental e estranho desta personagem que recua enquanto voz narrativa até as obscuras primícias.  
       Zina é concebida em uma noite tida como santa pelos muçulmanos.

           Nesta noite as únicas atuações humanas deveriam ser as preces, as súplicas e a recitação do alcorão, a perdoar e a pedir perdão a Deus. É uma noite considerada sagrada, mas o autor sem jamais revelar-lhe o nome, deixa claro que se trata da assim chamada Lailat al-Qadr, (القدر‎ لیلة), ou noite da determinação ou do destino, vigésima sétima noite do Ramadã, na qual celebra-se o princípio das revelações a Maomé, pelo anjo Gabriel, no Monte Hira.

         
      Ora, desprezando os cânones os pais entregaram-se à prática sexual, considerada neste contexto como um pecado grave. Assim o destino do ser concebido nesta noite está traçado. Desde o princípio, ele será marcado pela prática pecaminosa das origens, a qual, tal uma maldição, se revelará em sua vida por diversos sinais e episódios estranhos: “Je fus conçue la nuit de l’erreur, la nuit sans amour. Je suis le fruit de cette violence faite au temps, porteuse d’un destin qui n’aurait jamais dû été le mien. »

       Segundo o islã, gênios e demônios expulsos da convivência santa vivem e vagam pelo mundo oculto subterrâneo dos poços, cisternas, cavernas, ocos de árvores, latrinas e todos os locais subterrâneos impuros: “Dans l’hierarchisation mystique de l’espace, la droite et le haut sont opposés à la gauche et au bas: d’une part, on trouve le pur et le céleste, d’autre part, l’impur et l’infernal. » (CHELHOD, 1987, p. 77)São entidades cujo status oscila entre o sobrenatural e o humano. Herança da mentalidade primitiva do nomadismo, eles foram, todavia, “islamizados”, assim como a noção de baraka, portanto toda sua atuação no mundo dos viventes é submetida à força de Allah. Transitando no limbo inferior e negativo, os gênios e demônios são forças obscuras: “Ils oscilent en effet entre les hommes et les démons qui finissent pourtant par les absorber.

Passíveis de estabelecer contatos e relações com os homens, sua função é, contudo causar sua perda. “Humanizados” os gênios comem, bebem, casam e dão em casamento, ambicionam e também morrem.

       É com esta corte infernal que Zina, a personagem principal de La Nuit de l'Erreur fará contato, o que acontece no momento em que a personagem e a família mudam-se para uma casa antiga em Tanger. Nesta casa, toda água para serviços e consumo deve ser trazida da fonte da praça, como é tão comum nas antigas medinas. Zina contudo, faz uso do poço existente na casa, desobedecendo a ordem de que ele não deveria ser usado, por estar abandonado e provavelmente, assombrado


Main de Fatima

Ora, um poço habitado por demônios e djins é um tema constante na literatura  árabe, e trata-se  de um local de onde está absolutamente ausente a baraka,a benção. O uso da água do poço proibido privará Zina, a heroína das benesses do sagrado e faz dela refém das forças do mundo inferior.

Assim, repetindo os mitos da queda, o simbolismo da mulher desobediente e curiosa, tentada, tentadora, destemida e ousada é flagrante neste episódio envolto na roupagem islâmica. Nele, Zina/Eva, em contato com os gênios/serpente prova da água/fruto proibido e cai para sempre no mundo no pecado que passa a ser representado pela necessidade de atuação voltada para o mal pelo qual a personagem é atraída e tenta exercer em diversas ocasiões. Ela extrai destas ações a potencialidade negativa do sagrado, por um lado difuso nas origens pré-islâmicas e por outro lado racionalizado pela mentalidade muçulmana.
A figura dos gênios e demônios está presente de forma abundante na literatura árabe clássica e moderna como vemos, e As mil e uma noites, exemplo universal os abriga em contos célebres como Aladin e a Lâmpada mágica – presença de um gênio positivo e benéfico -, ou em O pescador e o Gênio – presença de um demônio. Nestes contos a presença dos gênios e demônios é totalmente sustentada pelo racionalismo islâmico.