Uma das mais surpreendentes informações concedida pela heroína
do romance La nuit de l'erreur, de Tahar Ben Jelloun sobre si mesma é a revelação do seu conhecimento da noite em que
foi concebida. O conhecimento desta informação já é per se uma indicação do caráter sacramental e estranho desta
personagem que recua enquanto voz narrativa até as obscuras primícias.
Zina é concebida
em uma noite tida como santa pelos muçulmanos.
Nesta noite as únicas
atuações humanas deveriam ser as preces, as súplicas e a recitação do alcorão,
a perdoar e a pedir perdão a Deus. É uma noite considerada sagrada, mas o autor
sem jamais revelar-lhe o nome, deixa claro que se trata da assim chamada Lailat al-Qadr, (القدر لیلة), ou noite da determinação ou do destino, vigésima
sétima noite do Ramadã, na qual celebra-se o princípio das revelações a Maomé,
pelo anjo Gabriel, no Monte Hira.
Ora, desprezando os cânones os pais entregaram-se
à prática sexual, considerada neste contexto como um pecado grave. Assim o
destino do ser concebido nesta noite está traçado. Desde o princípio, ele será
marcado pela prática pecaminosa das origens, a qual, tal uma maldição, se
revelará em sua vida por diversos sinais e episódios estranhos: “Je fus conçue la nuit de l’erreur, la nuit
sans amour. Je suis le fruit de
cette violence faite au temps, porteuse d’un destin qui n’aurait jamais dû été
le mien. »
Segundo o islã, gênios e demônios expulsos da convivência
santa vivem e vagam pelo mundo oculto subterrâneo dos poços, cisternas,
cavernas, ocos de árvores, latrinas e todos os locais subterrâneos impuros: “Dans l’hierarchisation mystique de l’espace,
la droite et le haut sont opposés à la gauche et au bas: d’une part, on trouve
le pur et le céleste, d’autre part, l’impur et l’infernal. » (CHELHOD,
1987, p. 77)São entidades cujo status oscila
entre o sobrenatural e o humano. Herança da mentalidade primitiva do nomadismo,
eles foram, todavia, “islamizados”, assim como a noção de baraka, portanto toda sua atuação no mundo dos viventes é submetida
à força de Allah. Transitando no limbo inferior
e negativo, os gênios e demônios são forças obscuras: “Ils oscilent en effet entre les hommes et les démons qui finissent
pourtant par les absorber.
Passíveis de estabelecer contatos e
relações com os homens, sua função é, contudo causar sua perda. “Humanizados”
os gênios comem, bebem, casam e dão em casamento, ambicionam e também morrem.
É com esta corte
infernal que Zina, a personagem principal de La Nuit de l'Erreur fará contato, o que acontece no momento em que a personagem e
a família mudam-se para uma casa antiga em Tanger. Nesta casa, toda água para
serviços e consumo deve ser trazida da fonte da praça, como é tão comum nas
antigas medinas. Zina contudo, faz uso do poço existente na casa, desobedecendo a ordem de que ele não deveria ser usado, por estar abandonado e provavelmente, assombrado
Main de Fatima |
Assim, repetindo os mitos da queda, o
simbolismo da mulher desobediente e curiosa, tentada, tentadora, destemida e
ousada é flagrante neste episódio envolto na roupagem islâmica. Nele, Zina/Eva,
em contato com os gênios/serpente prova da água/fruto proibido e cai para
sempre no mundo no pecado que passa a ser representado pela necessidade de
atuação voltada para o mal pelo qual a personagem é atraída e tenta exercer em
diversas ocasiões. Ela extrai destas ações a potencialidade negativa do
sagrado, por um lado difuso nas origens pré-islâmicas e por outro lado
racionalizado pela mentalidade muçulmana.
A figura dos gênios e demônios está
presente de forma abundante na literatura árabe clássica e moderna como vemos,
e As mil e uma noites, exemplo universal os abriga em contos célebres como
Aladin e a Lâmpada mágica – presença de um gênio positivo e benéfico -, ou em O
pescador e o Gênio – presença de um demônio. Nestes contos a presença dos
gênios e demônios é totalmente sustentada pelo racionalismo islâmico.
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